‘Inventor’ da Bahia, Dorival Caymmi faria 107 anos nesta sexta; legado segue na baianidade

“A Bahia está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar tão verde e o povaréu”. A frase é da carta escrita por Dorival Caymmi em 1976 para o amigo Jorge Amado, na época em que o escritor morava na Inglaterra. O documento é um dos mais belos registros com notícias de terras baianas. 

Na carta, Caymmi retrata, com seu já reconhecido talento, cheiros e cores de uma Salvador viva e efervescente. Cita as ‘lorotas’ do parceiro Carybé, as andanças pelas ruas e atualiza o amigo sobre as notíciais da primeira capital do Brasil. No dia em que o autor do registro completa 107 anos, lembramos que a Bahia de Caymmi segue como ele mesmo descreveu, apesar de percalços: viva, ainda lá (ou aqui), e cada dia mais bonita.

“Dorival Caymmi faz parte da história da Bahia e da identidade musical do Brasil, as suas ricas obras são uma herança para todos nós!” Júnior Borges.

Dorival Caymmi é considerado por muitos artistas e pesquisadores como peça fundamental em um conceito de Bahia que se tornou popular em todo mundo: a baianidade criada por nosso Buda Nagô. Mais do que cantor e compositor, Caymmi é uma espécie de inventor da Bahia. 

“É justo atribuir a ele essa autoria, de uma Bahia esparramada no país inteiro. Primeiro porque juntou todos os aspectos mais importantes, a começar pelo povo”, disse Gilberto Gil, na ocasião dos 10 anos da morte de Caymmi, em 2018.

“Caymmi sabia de tudo. João Gilberto me disse que eu olhasse sempre para ele, que ele era o gênio da raça, uma lição permanente”, disse Caetano Veloso, em agosto do ano passado, em suas redes sociais. Mais recentemente, no filme “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, Caetano vai além: “É a maior figura da música popular brasileira de todos os tempos”, afirma.

Homem das canções praieiras Caymmi cantou o mar e uma forma de vida do povo da Bahia (Foto: Divulgação/Acervo Pessoal)

“Dorival Caymmi é uma das pedras fundamentais na construção da identidade musical do Brasil. Todos os grandes músicos, compositores e intérpretes reconhecem a excelência da obra de seu Dorival, já eternizada na memória e no coração do povo baiano e brasileiro”, disse Margereth Menezes ao CORREIO.

Nascido em 30 de abril de 1914, na capital baiana, Caymmi teve liberdade e intimidade para criar sobre sua terra. Nasceu na Capelinha de São Caetano, mas ainda criança, se mudou com a família para o bairro da Saúde e depois para a Ladeira do Carmo, antes de seguir para o Rio de Janeiro. Quando voltou à Bahia, no final dos anos 60 por “pressão” de Jorge Amado, morou na Pedra da Sereia, no Rio Vermelho, e em Itapuã, antes de voltar ao Rio, onde viveu até 2008, quando morreu. 

Ele cantou a “cidade da Bahia” da Ribeira à Itapuã, e percorreu parte do estado. Foi de Olhos D’Água até Alagoinhas e fez de Maracangalha destino popular, como ou sem Anália.

Caymmi fazia questão de dizer que era artista por causa de sua terra natal. “Eu sou um poeta porque existe uma Bahia onde eu nasci que está aqui dentro de mim”. E assim fez da Bahia que conhecia como poucos a própria “criação”. A Bahia que é receita cantada do vatapá, que é Lavagem do Bonfim e os balangandãs das baianas. Um lugar que é resistência do povo, que mantém acesa a chama da Conceição da Praia embandeirada, mesmo com a tradição cada vez mais ameaçada. Caymmi fez da Bahia a terra de “quem ouve desde menino e aprende a acreditar”. A Bahia da rainha das águas, da fé, do culto ao belo e também de um João Valentão que vive em cada ser que se banha nas águas da Baía de Todos os Santos. Caymmi fez de um modo de vida a nossa baianidade.

Modo que chegou a ser ironizado por parte da crítica cultural brasileira, como relembra a cantora Adriana Calcanhoto, no filme ‘Dorivando Saravá, o preto que virou mar’. “Durante muito tempo, o Caymmi foi atrelado a uma imagem muita caricata do baiano, e dele próprio, e da preguiça, sendo a preguiça uma coisa ruim, quando o que ele está fazendo é o oposto disso”, diz.

Eternizado em Itapuã, Caymmi ganhou até máscara durante a pandemia (Foto: Tiago Caldas/Arquivo Correio)

Autor da tese de doutorado “A pedra que ronca no meio do mar: baianidade, silêncio e experiência racial na obra de Dorival Caymmi” (Unicamp, 2017), o pesquisador Vitor Aquino Teixeira é outro que considera Caymmi, ao lado de Jorge  Amado, Carybé e Pierre  Verger, como um dos patriarcas da baianidade. 

Aliás é de Jorge Amado, um dos grandes companheiros de vida do cantor e compositor, uma das mais bonitas definições sobre Caymmi.

“Um homem do povo pobre da Bahia, que nos enriqueceu imensamente. Que nos tornou maiores, que nos deu uma dignidade ainda maior, que acrescentou algo a essa civilização baiana (…) essa nação da Bahia para qual Dorival Caymmi, meu irmão, meu irmãozinho, é o grande poeta, o grande cantor, o grande intérprete”, disse Jorge Amado, em declaração que abre a parceria de Caymmi com Sérgio Mendes em ‘Milagre’, em 1988. (Veja abaixo)

Triste Bahia: racismo na própria terra

A fala de Jorge Amado destaca o orgulho do amigo enquanto “homem do povo pobre da Bahia”, mas é passagem para um outro momento, esse duro e vergonhoso na história da Bahia para com Caymmi. Em 1970, vivendo em Salvador, após influência de Jorge Amado, o cantor e compositor foi cotado para figurar na Academia de Letras da Bahia, mas segundo informações que chegaram à família Caymmi, um “homem de cor” como ele não seria bem quisto na ALB.

A tese de Vitor Aquino Teixeira fala sobre a história e lembra o destaque na imprensa baiana na época. Segundo relembra Aquino, foi de Walter da Silveira, um dos maiores críticos de cinema da Bahia, a sugestão da candidatura de Dorival Caymmi para a Academia e ganhou entusiastas como Jorge Amado e o então presidente da casa, Wilson Lins.

De acordo com o pesquisador, não é possível cravar que a candidatura de Caymmi teria sido barrada pelo racismo de alguns dos membros daquela Academia. Mas o fato é que o professor Antônio de Assis Barros, que era proprietário de uma livraria em Salvador, teria ido à casa da Pedra da Sereia, onde viviam Caymmi, a esposa Stella e os filhos, e contado sobre uma reação racista contra a presença do compositor no interior da Academia.

Ainda segundo o pesquisador, Stella teria divulgado o fato de forma indignada e a história ganhou os jornais. O presidente da Academia Wilson Lins afirmou se tratar de um equivoco. Ele destacou o talento de Caymmi, disse que a cadeira em disputa era ocupada “por um eminente homem de cor” (o historiador Afonso Ruy) e chegou a dizer que a Academia Baiana de Letras foi “fundada por mulatos e negros”. Stella ainda revelou à imprensa que Assis Barros teria tentando mudar o que havia dito, mas já era tarde. O fato é que Caymmi recusou a candidatura e Stella reuniu a família para mostrar aos jornais que a Academia de Caymmi era sua família.

Recorte do Jornal da Bahia traz resposta de Stella, companheira de vida de Caymmi, sobre o episódio de racismo (Reprodução Jornal da Bahia, 1970)

Caymmi nas telas e na rede

A arte de Caymmi segue mais viva do que nunca, cantada ao quatro cantos e vivida no dia a dia do povo. Nos últimos anos, ele tem sido tema de muitas produções cinematográficas. Em 2018, o documentário “Dê Lembrança a Todos”, de Fábio e Thiago Di Fiore, reconstruiu a trajetória do homem que mudou a história da Bahia. Lançado em 2019 e com grande repercussão no ano passado, “Dorivando Saravá, o Preto que Virou Mar”, de Henrique Dantas, discutiu a presença da cultura afro-brasileira na obra de Caymmi. Lançado em 2019 e ainda rodando por festiviais, “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, de Daniela Broitman traz memórias e confidências do artista.

Diretora de “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, Daniela Broitman celebra essa presença de Caymmi em cena como a manutenção e valorização de um legado, especialmente no atual momento em que vive o Brasil.

“Há um certo desconhecimento cultural no nosso país, onde a arte e os artistas não são valorizados como deveriam, muito menos neste momento da nossa história. “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos” celebra a música, o cinema, a pintura, a poesia, enfim, a arte e a cultura, assim como também a alegria de viver. Um dos meus desejos é que esse filme contribua para que o imaginário caymmiano siga sendo uma fonte inesgotável de inspiração, e que seu legado se torne ainda mais conhecido no Brasil e mundo afora.”, disse AO CORREIO.

Em “Dorival Caymmi – Um homem de afetos”, diretora Daniela Broitman resgate uma entrevista inédita com o artista baiano

A diretora do filme, que aguarda o fim da pandemia para ganhar salas de cinema e depois plataformas online, também destaca ao CORREIO a importância da Bahia na obra do artista. Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos retrata também o último encontro de Caymmi em vida com a Bahia. 

“A canção de Caymmi “O que é que a baiana tem?”, gravada por Carmen Miranda, revelou a Bahia para o mundo. Essa anedota, por sinal, é contada por Caetano Veloso no filme de uma forma muito divertida. Não tem como falar de Caymmi sem falar da Bahia. Seu amor pela Bahia é evidente em suas canções, sua personalidade, seu estilo de vida. Ouvindo as canções praieiras podemos até visualizar a Bahia, os pescadores, as baianas, o Candomblé. Ele foi feliz no Rio de Janeiro, pra onde se mudou ainda jovem, mas nunca deixou de sentir falta da Bahia. Sua canção “Saudade da Bahia” está aí para nos lembrar. E no filme achei importante mencionar sua última viagem à terra natal; acho que Caymmi teria gostado dessa sequência”, contou Daniela ao CORREIO. (Veja trailler).

Além das produções audiovisuais, a história de Caymmi também está presente na era das redes sociais. Neto do artista baiano, Gabriel Caymmi é responsável por administrar o perfil @dorivalcaymmi no Instagram, ressaltando a obra e as multifacetas do avô. Além de cantor e compositor, Caymmi era pintor e artista plástico.

Gabriel também publica gravações históricas, como um ensaio de Caymmi e os filhos com Tom Jobim – em 1964 eles estiveram juntos no disco “Caymmi Visita Tom E Leva Seus Filhos Nana Dori & Danilo” – além de outras célebres parcerias, como com Carmen Miranda, com o francês Jean Sablon, e com Emilinha, além de tantos outros artistas.

Com uma identidade visual bem ao estilo Caymmi, toda concebida por Gabriel, o perfil ainda publica fotos ao longo da vida do artista, desde ainda jovem na Bahia até já consagrado por diversas partes do mundo. Um rico material colocado ao alcance de muitos. Abaixo em um raro registro, Caymmi aparece em frente à casa onde viveu, na Capelinha de São Caetano, em Salvador, na rua que leva o nome do ex-escravo que se tornou advogado abolicionista, Luiz Gama.

“Isso é um trabalho que venho fazendo desde 2005 onde no meu projeto final da faculdade de desenho industrial, eu idealizei um espaço cultural em homenagem a ele. Desde essa época eu venho trabalhando com a obra dele junto aos meus projetos paralelos. Em 2008, em uma parceria com o Instituto Antonio Carlos Jobim, fizemos o projeto de acervo digital dele nos moldes do acervo do Tom (Jobim.org). Desde esse projeto onde eu tive acesso a praticamente todo o acervo dele que eu não conhecia, pois estava guardado, eu comecei mais ainda a enxergar o legado dele com algo que tem que ser divulgado, explorado e mantido vivo. E então como artista gráfico acho que seria a minha obrigação fazer isso.” contou Gabriel Caymmi ao CORREIO.

“Procurei criar um Instagram vivo sobre ele, que fosse uma biografia em movimento e também e trazendo outras perspectivas da obra dele pouco exploradas como pintor. Dividi em séries explorando as temáticas da obra e desenhei toda a timeline de forma que fosse infinita, onde cada post tem relação visual com o todo. A resposta do público tem sido muito positiva, embora ainda o número de seguidores seja pequeno, mas fiel e amoroso. É o que vale”, completou.

Tal qual Adalgisa, uma das tantas personagens musicadas pelo baiano, é no legado, que Caymmi manda avisar aos saudosos e aos de fora que, “graças a Deus, a Bahia tá viva e ainda lá”. Aqui, seguimos com a certeza de que enquanto houver Bahia, haverá Dorival Caymmi, “porque não há sonho mais lindo do que sua terra”.

“Dorivando Saravá, o preto que virou mar” é um dos recentes documentários sobre o Buda Nagô (foto: Divulgação/Dorivando Saravá

Fonte: Jornal Correio

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